domingo, dezembro 11, 2005

Ancoras

Tarde de sábado... bonita, fria.
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O sol já se põe. Está a ficar mais fraco.
O meu pai vira-se para mim e diz-me Vamos lá? respondo afirmativamente.
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Lá fomos... Vamos no meu digo eu. Lá seguimos. A viagem é curta. Talvez uns dois ou três quilómetros desde casa até lá.
Durante o percurso o silêncio. Ao fundo... muito ao fundo da minha mente ouço um estranho debitar de música. A rádio toca mas não a ouço.
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Chegámos. Entrámos. Olá Mãe! Está boa? diz o meu pai. Eu hesito... não digo nada por enquanto. Espero... espero uma resposta. Um sinal. Não há! Fico em silêncio mais um bocado. Depois de mais algumas insistências decido-me a avançar. Um avanço fraco. Um avanço de quem sabe bem que não vai ter sucesso na tentativa. Então Vó! Conhece-me? nada... nem a cabeça levanta. Não abre os olhos. Abre só quando lhe apetece... de vez em quando responde. Responde talvez quando se dá algum movimento naquele cérebro... um cérebro preso. Um corpo preso. É vida isto? penso.
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O meu pai emociona-se. Chora. Tem sido demais para ele estes anos. Toda esta merda que nos atinge que nem raios saidos do inferno. Uma atrás da outra. Sem perdão. Sem pausa. Aquele coração não aguenta muito. Será que um dia esta família entra numa normalidade. Na suavidade. Na calmaria. Como o rio que nasce na montanha... vem em torrente, turbilhão, força, pancada... não há forma deste rio entrar em vales planos e verdejantes onde possa simplesmente correr... suave... calmo.
Eu deixo-me ficar... fico em silêncio. Limito-me a esperar que finalmente ouça Bom. Vamos embora? Vamos direi eu. Uso as minhas capacidades de insensibilidade para escapar a tudo isto. Protejo-me. Não quero saber.
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Venho cá para fora... O meu pai fica a falar com uma senhora do lar. Dou uns passos. As traseiras daquela casa dão para um pequeno bosque do lado esquerdo. Ao meio, um terreno arado. Atrás desse terreno um pinhal que se prolonga para a direita. O sol continua baixo. Já está por trás dos pinheiros.
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Fico ali a pensar... quem irá me ver quando estiver assim? Quem vai chorar?
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Olho para o céu... aquele azul mais escuro vai descendo. Aquele azul que anuncia uma noite muito fria. Esse ar frio já me bate na cara... lembro-me de três pessoas a quem não tenho dado a atenção devida.
A Zeni... deve andar mais acompanhada. Deve estar bem.
A CLQ... tem andado entretida com os ultimos arranjos. Desconfio que nem sabe para onde se virar.
A Redcat... como estás? Estás bem? Desculpa... sou um péssimo amigo. De vez em quando embrenho-me nas minhas próprias fugas e esqueço tudo.
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Foi nas duas últimas que me apoiei mais naqueles ultimos meses... há um ano atrás. O fim estava perto e sabia-o. Elas... sem o saberem bem, foram as minhas ancoras em Lisboa.
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Já não vos vejo há muito tempo...

Anónimo disse...

Um dia vai chegar o dia em que a tua avó e a tua familia para de sofrer, na minha chegou faz amanhã uma semana. Acabou o sofrimento, a dor fica a saudade, e a saudade e mais a saudade ainda. Sempre pensei que no dia em que ela moresse ia pensar que foi o melhor, que ela não merecia aquele sofrimento, não ela, mas... não é nada assim e a dor da ausência é muito grande...

Anónimo disse...

Gostei muito da imagem do rio...

Eu é que não tenho estado muito disponível... mas este fim-de-semana lembrei-me de te telefonar para um café. Perdi-me no tempo, com a arrumação de uns armários. Arrumava a minha vida...

viveremsegredo disse...

eu acredito que depois da tempestade vem a bonança...e tu vais ter a tua...vais ver...bj

Anónimo disse...

As minhas âncoras estão a 300 km de distância...

Anónimo disse...

Pior é quando pensamos que temos a âncora bem segura e ela solta-se, de um momento para o outro.

Eb1Eng.ºDuarte Pacheco disse...

Não me esqueço no dia em que fui com a minha mãe visitar a minha avó paterna ao lar.A última vez que a vi.Fomos as únicas naquele sabado à tarde.O ambiente era do mais deprimente do que se possa imaginar.No final da visita, ao descer as escadas, a minha mae vira-se para mim, com os olhos húmidos e voz trémula e diz-me:"Filha,nunca me ponhas num lar".

heidy disse...

Eu sei o que se passa nesses ambientes. Fui visitadora de lares durante uns bons anos.
Alguns são autênticos depósitos. Outros, soluções para quem não tem condições. Seja qual for a resuloção, é sempre um corte.Lamento por ti. É doloroso ter alguém de quem se gosta longe de nós. Seja mentalmente, seja fisicamente.